A todo ano, o início da Quaresma é marcado pelo rito da imposição das cinzas, rito que se encontra no Antigo Testamento como em rituais de várias religiões. Os antigos, em alguns lugares, levavam para casa algo dos sacrifícios fúnebres para se manter em comunicação com os defuntos. Para os hebreus, a cinza é sinal de dor, de humilhação, conversão e penitência. Um dia, com duras palavras, Jesus disse: Ai de ti, Corazim! Ai de ti, Betsaida! Se em Tiro e Sidônia se tivessem realizado os milagres feitos no meio de vós, há muito tempo teriam demostrado arrependimento, vestindo-se de saco e sentado sobre a cinza (Lc 10,13).
A Tradição bíblica mantém viva a consciência da origem do ser humano, feito com o pó do solo (Gn 2,7); disso, expressa ter consciência Abraão: Sou bem atrevido em falar ao meu Senhor, eu que sou pó e cinza (Gn 18,27). No decorrer da narração bíblica, tantas vezes, encontramos pessoas que se cobrem com cinza. Tamar derramou cinza sobre sua cabeça (2Sm 13,19); Mardoqueu rasgou as vestes, cobriu-se com pano de saco e espalhou cinza na cabeça (Ester 4, 1); Jó disse: acuso-me a mim mesmo e me arrependo, no pó e na cinza (Jó 42,6); o salmista confessa: Em vez de pão estou comendo cinza (Sl 102/101, 10); Daniel afirma: Voltei o olhar para o Senhor Deus procurando fazer preces e súplicas com jejuns vestido de saco e coberto de cinza (Dn 9,3).
A Igreja, introduzindo em sua liturgia o rito das cinzas, confirmava essa antiga tradição. Do resto, nossa experiência nos fala que tudo o que é vida, aos poucos, torna-se cinza. Plantas e animais, como todo ser humano tem este destino. As cinzas usadas para a celebração litúrgicas pertencem a velhos ramos verdejantes. Pouco tempo se passou, e agora se reduziram em um punhado de cinza. Nada expressa a fragilidade de toda vida mais do que essa cinza. O ser humano, tantas vezes soberbo, vaidoso, arrogante e iludido, olhando para a cinza, tem bom motivo para tomar consciência de sua permanente e estrutural provisoriedade e do valor limitado de cada coisa.
Abrindo a Quaresma, a Igreja convida seus filhos e filhas a tomar consciência dessa caducidade que acompanha a vida toda. Num rito, simples e austero, enquanto coloca um pouco de cinza (na testa ou na cabeça) diz: “Recorda-te que tu és pó”. As palavras que a liturgia hoje propõe recordam a pregação inicial de Jesus: “Converta-se e creia no evangelho” (cf. Mc 1,15). Desse modo, o rito convida a responder à humana fragilidade com um acréscimo de fé. A imposição das cinzas não visa humilhar, mas incentivar a consciência do justo valor das realidades terrenas; ela é – como reza a oração – uma bênção “para que os fiéis possam celebrar de coração purificado o mistério pascal do vosso Filho”; e para que “a penitência nos fortaleça no combate contra o espírito do mal” (oração do dia).
Escrevia o teólogo Romano Guardini: “Tudo se torna cinza. Minha casa, minha roupa… a mão com que escrevo, o olho que lê, o inteiro meu corpo. As pessoas que amei, as que odiei, as que temi. Tudo o que me apareceu grande sobre a terra, o que me apareceu pequeno, o que achei de valor: tudo cinza, tudo”.
Dom Armando